Ao entrar em contato com o arquétipo da criança palavras como alegria, simplicidade, ingenuidade, cuidado, crescimento, beleza, vida, amor, brinquedo, criatividade e futuro, inevitavelmente, surgem em minha mente. De fato a criança deve representar todo o potencial evolutivo sem o peso dos deveres e das obrigações, sem o ranço da opressão, com leveza e graça. Porém, infelizmente, com um pouco mais de aprofundamento, começam a surgir palavras como abandono, exposição, perigo, fome, medo, dor, agonia, entre outras palavras igualmente deprimentes e tristes. Por isso, aproveito esse momento para uma reflexão sobre o que está acontecendo com as nossas crianças interiores e exteriores, reais ou imaginárias.
A criança representa o alicerce do piso no qual todo caminho do futuro é construído. Com isso, descuidar da criança é o mesmo que inviabilizar o futuro. Porém, parece que esse descuido é contínuo e crescente. Essa é, em minha opinião, a causa da crescente aparição de sintomas como depressão e síndrome do pânico, que acabam induzindo as pessoas, numa tentativa de defesa neurótica, buscar guarida em necessidades maníacas de se manterem ocupadas e, conseqüentemente, anestesiadas por meio de excessos de atividades, consumo de remédios antidepressivos ou drogas, num contínuo processo de negação e destruição da criança interior.
A criança está sendo agredida de várias maneiras, parece que a cada dia surge uma nova patologia para bombardear as nossas crianças, apavorar os pais e justificar a incompetência das instituições de ensino e dos governos. É incrível a quantidade de rótulos e diagnósticos para justificar os possíveis gritos de ajuda que as crianças estão fazendo para seus pais e para toda sociedade. Parece que a única pré-ocupação dos educadores e dos políticos é com a adequação e a adaptação normótica, e quando isso fica inviável se justificam por meio de diagnósticos psicopatológicos que vão de hiperatividade, déficit de atenção, dislexia, psicopatia, delinqüência ou neurose de caráter. Aliado a tudo isso também temos a contínua ansiedade dos pais em poder custearem as crescentes despesas financeiras que seus filhos lhes dão, muitas vezes associada com sentimentos de raiva invejosa, além de projetarem em seus filhos todas as frustrações ou desejos que eles não puderam realizar em suas infâncias.
De fato esse quadro começa ficar alarmante quando agregamos a tudo isso a exclusão social e todas as questões de preconceitos reveladas ou veladas. Esse é um momento crítico que exige muita coragem de quem não está anestesiado e se disponibiliza para um enfrentamento. Uma tomada de atitude em prol da criança, interior e exterior, exige muita astúcia e criatividade, pois de nada adianta medidas invasivas ou assistencialistas. Parece que nada possibilita uma mudança criativa de paradigma, o sistema econômico centrado no mercado está paulatinamente mantendo as pessoas aprisionadas em um medo multifocal e num mar de desejos e “obrigações” consumistas. Com isso, impaciência, raiva, intolerância e agressividade vão deixando as crianças cada vez mais doentes num contexto social igualmente árido e repleto de indivíduos envoltos com suas feridas narcísicas que, por sua vez, acabam ecoando os gritos das suas crianças internas, abandonadas ou negadas, que perderam a capacidade de entreter-se com a vida.
Isso me faz lembrar que recentemente vi um garotinho de no máximo 9 anos, numa Quarta-Feira por volta das 16 horas. O garoto estava pegando carona no pára-choque de um ônibus, inalando o conteúdo de um saco plástico que provavelmente continha cola de sapateiro, passeando tranquilamente nas ruas do centro da cidade de São Paulo, que estavam repletas de pessoas e vários policiais. O impressionante é que todos estavam igualmente anestesiados, talvez num gesto de solidariedade inconsciente com o garoto que, nesse momento, parecia ter se tornado invisível para a maioria. Essa situação vai se repetindo cotidianamente sem que absolutamente nada de prático seja feito. O professor Paulo Freire já dizia: “Ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão”.
Essas são as razões que me levaram a fazer esse texto. Quem sabe, podendo compartilhar meu sentimento de impotência e castração e o sofrimento da minha criança interior ao presenciar as crianças reais da nossa sociedade serem esmagadas pela fantasia do crescimento sem qualidade de vida e cuidados, mais pessoas possam sair do estado de analgesia ou de depressão rumo a uma tomada de consciência para o problema do nosso futuro próximo. Desta forma, termino expressando minha aspiração de que todas as crianças do mundo, as internas e as reais, incluindo as crianças de Beslan, que acabaram de morrer por causa de governos autoritários e excludentes e de perversos assassinos terroristas, possam sonhar com a liberdade, igualdade e fraternidade. Desejoso de que num futuro próximo a humanidade passe a eleger governantes que pensem e ajam de forma integral e criativa para solucionar essa crise eminente.
Feliz dia das crianças a todos nós!
(publicado no jornal Shoping News de 03/10/2004)
* WALDEMAR MAGALDI FILHO (www.waldemarmagaldi.com). Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, DAC – Dependências, abusos e compulsões, Arteterapia e Expressões Criativas e Formação Transdisciplinar em Educação e Saúde Espiritual do IJEP em parceria com a FACIS. wmagaldi@gmail.com