O MAL E A PSICOLOGIA JUNGUIANA

11 de abril de 2018

INTRODUÇÃO

Trabalharemos o Problema do mal como possibilidade de libertação, dominação ou aprisionamento. Percebemos que o mal é uma realidade inevitável e presente ao longo da existência de todos os indivíduos, influenciando significativamente todas as seis áreas de interesses e ou necessidades da existência humana, distribuídas nas atividades: sociais, profissionais, familiares, físicas, emocionais e espirituais.
Psicologicamente podemos afirmar que tudo o que é negado ou reprimido volta de forma obscura e com poderes muito mais elevados do que outrora. Então, negar o mal é correr o risco que ele volte com poderes obscuros e muito mais destrutivos. Porque o que é negado ou reprimido, sob a luz da psicologia, não desaparece, apenas fica recolhido no inconsciente, acumulando energia até eclodir, geralmente de maneira explosiva e traumática, em um futuro breve.
Já que não podemos negar o mal, a melhor atitude que a psicologia deve tomar é tentar entender o sentido e o significado da sua existência. E, geralmente concluímos que sua presença possibilita crescimento, apesar da dor e das crises que ele provoca.
Não pretendemos afirmar que o mal não é realmente mal, já que no final ele pode possibilitar ou se transformar em bem. Principalmente porque uma minoria é que consegue transformar o mal em bem. Mas, podemos analisar como é que acontece o processo de transformação e qual aprendizado podemos ter das experiências.

CAPÍTULO I – A ALMA E O PROBLEMA DO MAL.

Ao fazermos uma reflexão sobre o mal nos remetemos, inevitavelmente, para o problema da dor e do medo que interrogam nossa esperança e fé. No entanto, o mal é uma realidade que nos ameaça constantemente e que ninguém pode evitar. Resta-nos então, como única saída, enfrentá-lo. Neste momento cabe a pergunta: como encará-lo e por que temos que lidar com esta realidade inexorável? Será este o castigo do Criador frente nosso desejo de consciência? Ou será um presente que o Criador nos deixou para possibilitar nossa evolução? Destas indagações, a partir da psicologia de Carl Gustav Jung, é que pretendemos dar continuidade a este tema.
O mal, na psicologia profunda , pode ser associado ao arquétipo da sombra que representa o lado escuro e desconhecido do Si mesmo. A sombra é tudo aquilo que eu desconheço ou não aceito em mim. Nela está contida toda a potencialidade inconsciente, aspectos altamente construtivos ou destru0tivos. Reconhece-la é o primeiro passo para a ampliação da consciência e para um melhor relacionamento com si mesmo e com o mundo, pois toda sombra tende a ser projetada e, conseqüentemente, as projeções geram mau humor, intolerância e dificuldades para os diversos tipos e níveis de relacionamentos. Com isso podemos concluir que todas as doenças – físicas, psíquicas, sociais, etc. – são projeções sombrias que precisam ser conscientizadas e integradas na consciência.
A psique, que em grego é alma ou borboleta, busca a experiência e a realização. A alma, totalidade dos processos psíquicos, mora no indivíduo e necessita de Eros, o amor, que é o princípio da relação e o único que pode libertá-la de sua prisão material e imortalizá-la. A alma quer vida, quer relação, pois só pode ser no outro, para isso não pode temer a morte que o amor impõe. Desprovida de segurança sua única possibilidade está na entrega incondicional aos mistérios da própria vida relacional, aos mistérios do amor e ao jogo das projeções que surgem em cada encontro. É natural que surjam resistências, pois o desconhecido e o novo são amedrontadores, tremendos e fascinantes, é o numinoso que engloba e envolve, simultaneamente, o sagrado e a idéia do mal. Como Jung cita: “A alma é o ponto de partida de todas as experiências humanas, e todos os conhecimentos que adquirimos acabam por levar a ela. A alma é o começo e o fim de qualquer conhecimento. Realmente, não é só o objeto de sua própria ciência, mas também o seu sujeito”.
Desta associação podemos concluir que o mal é o desconhecido, o novo que nos remete a experiências e a desordens que possibilitam o surgimento de uma nova ordem, superior ou inferior, construtiva ou destrutiva, evolutiva ou involutiva; sem desconsiderarmos, é claro, o referencial de análise porque, o que pode ser construtivo e evolutivo para uns pode ser involutivo e destrutivo para outros. Portanto, o mal é relativo e subjetivo. Não podemos generalizá-lo nem erradicá-lo, uma vez que ele é vida. Ou seja, não existe vida sem risco, sem desejo pelo desconhecido e pelo novo, sem medo e sem transformação, enfim sem o mal.
Extirpar ou erradicar o mal, da nossa consciência, é uma tarefa impossível posto que, para a psicologia, a tarefa da consciência é discriminar os opostos, separando-os, classificando-os e ordenando-os e, para isso, busca sofrer experiências. A natureza humana necessita deste expediente para aliviar o drama da angústia da finitude e dos mistérios da vida. O mal é o “outro lado”, é o que fica espreitando e esperando a primeira oportunidade para se manifestar. É vida buscando vida, querendo sofrer e com medo de sofrer.
A iludida consciência racionalista acredita que se encastelando em convicções pode afastar o mal. Porém, como o sentido da vida é sofrer para poder ampliar a consciência em busca de realização e de significado para a própria vida, um conflito neurótico se instala.
O neurótico, que é a maioria esmagadora da humanidade, ainda na ilusão racionalista associa, equivocada e tragicamente, sofrimento com dor e com mal. Como resultado deste equívoco valorizamos e evitamos, a qualquer custo, a dor, impossibilitando o sofrimento e o fluir da vida, transformando-o em mal. E, o instrumento mais eficaz que encontramos, para viabilizar esta operação e dar manutenção a esta ilusão racionalista que nega a vida, é o poder.
Onde o poder está presente a vida e suas antinomias básicas e complementares – Eros e Thanatos – não podem sobreviver. O que surge é a paralisia do Phobos escamoteada pelo poder nas suas formas mais diversas e perversas através das convicções dogmáticas da academia científica, da força física, da religião mágica e infantil e, principalmente, da riqueza material advinda do acúmulo de dinheiro, que confere mais poder para o homem contemporâneo .
O dinheiro é desprovido de qualidade ele é semelhante às potencialidades desconhecidas do inconsciente, ele pode estar associado aos princípios do mal ou do bem, depende da forma como é empregado. Mas, como suas utilizações estão muito associadas ao poder, ele ganha um aspecto corruptor, disseminando o veneno da usura na busca de um poder infinito e inatingível.
A busca de poder é semelhante ao pacto com o demônio. Os resultados obtidos são estéreis. Os frutos advindos só podem ser usados para a ampliação do poder ou no consumo imediato de artigos de luxo.Não existe fertilidade porque a alma não pode se emprenhar com as experiências sofridas. A única coisa que pode crescer é o próprio poder.
Para abrir mão do poder é necessária uma entrega que vai além das convicções. É preciso uma conversão, pois só o convertido terá energia para encarar o Phobos sem buscar refúgio fácil e seguro no poder. Ao nos desapegarmos do poder, seja ele qual for, poderemos voltar a sofrer e transformar os sofrimentos em evolução, mesmo correndo o risco da dor, pois ela também é uma experiência sofrida que pode denunciar um caminho, uma potencialidade e uma possibilidade.
Podemos concluir, a partir destas reflexões, que a alma busca o sagrado e que o sagrado pode se manifestar, para o ego fraco e desestruturado ou muito rígido e estruturado nas convicções que os poderes facultam, com o mal. Esta é a razão que o mal para uns pode ser o portal de entrada para o sagrado ou um sofrimento doloroso e paralisante que aniquila e destrói o indivíduo. O mal pode ser encarado como um presente, dadivoso ou venenoso. Os presentes são bens a serviço dos vínculos, sociais ou individuais, são potencialidades e possibilidades de relação da alma com o Si mesmo e com o mundo.
O mal é uma realidade implacável que não pode ser negado. Negar o mal ou tentar eliminá-lo magicamente é um empreendimento, no mínimo duvidoso, já que ele esta presente independente da nossa vontade. Em Jung temos: “Só um homem infantil é capaz de pensar que o mal não está presente e em toda parte, e quanto inconsciente estiver disto, tanto mais o diabo lhe subirá na garupa. Por causa desta íntima relação com o aspecto tenebroso, o homem-massa tem uma incrível facilidade de participar impensadamente os mais terríveis crimes. Só o autoconhecimento mais amplo e severo possível, que olhe o mal e o bem numa relação correta e seja capaz de ponderar todos os aspectos, oferece uma certa garantia de que o resultado final não será ruim”.
Negar o mal é negar uma parcela importante do Sí-mesmo, ele deve ser entendido como um aspecto da totalidade cósmica distorcida e invadida de representações, símbolos e idéias errôneas, enleado em imperfeições medos e ilusões de poder. Jung continua: “A natureza humana é capaz de um mal infinito. …Hoje, como nunca dantes, é importante que os seres humanos não subestimem o perigo representado pelo mal que espreita dentro deles. Ele é, infelizmente, bastante real, e é por essa razão que a psicologia deve insistir na realidade do mal e deve rejeitar qualquer definição que o considere insignificante ou na verdade inexistente.”
O mal é uma realidade presente na vida, sem ele não é possível o crescimento. Não existe história de vida sem a presença do mal, graças a ele que as coisas acontecem, surgem os milagres e podemos ficar fascinados com as novelas de final feliz ou com as terríveis noticias que lemos nos jornais. Sem tragédias, conflitos, dores e injustiças não existiriam histórias para serem contadas. Com isso podemos voltar para a duvida psicológica: O mal é realmente mal ou depende de como o experiênciamos, superando-o construtivamente ou destrutivamente? Além disso, devemos discernir entre o mal natural e o mal moral, se é que podemos fazer esta distinção, pois o que podemos catalogar de mal natural, como uma praga de gafanhotos ou uma enchente que arrasa toda uma comunidade, também podemos dizer que é um mal moral decorrente de um comportamento materialista e antiecológico produzido pela ganância humana. Será que o mal tem uma causa? Será que ele não é e fim, como afirmam muitas correntes orientais? Mas, parece que o grande mérito em estudarmos sobre o mal fica a cargo da busca de sentido e significado da experiência sofrida.
É na maneira que lidamos com o mal que podemos crescer ou ficarmos paralisados, gerar mais produção de mal ou tornarmo-nos vítimas inválidas e geradoras de sentimentos de culpa. Para a psicologia junguiana podemos lidar com as intercorrencias “maléficas” do dia a dia sob três aspectos ou dimensões: A dimensão do ego, que podemos vulgarmente denominar de ponto de vista do umbigo, a dimensão do julgamento de valores, que podemos chamar de ponto de vista moralista sentimental e, finalmente, na dimensão do Self, que é a totalidade psíquica, que podemos denominar como ponto de vista transcendente ou sagrado.
Existe uma história em que o neófito aprendiz a monge saiu com seu mestre para sofrer, na realidade cotidiana, sua iniciação. Dentre muitas andanças ocorreu uma experiência que lhe causou grandes aflições e sentimentos de culpa, mas que suscitou muitas reflexões sobre sua prática e sua busca. Ele relata que em um lugarejo muito humilde vivia uma família com vários filhos. O lugar era árido, a casa muito precária, deixando evidente que os habitantes apenas sobreviviam quase que contra as possibilidades da natureza. O neófito indaga ao mestre: como será que eles resistem a tanta miséria? E o mestre retruca: vamos montar acampamento aqui e você vai perguntar a eles como é que conseguem sobreviver nesta precariedade. O jovem aprendiz obedece e, após se instalarem nas redondezas, vai até o casebre, onde vê um homem, apático e desvalido, sentado à sombra de uma árvore esculpindo em um toco de madeira como se estivesse esperando o tempo passar ou a morte chegar; aproximando-se e se apresentando como um religioso em formação pergunta como que ele e sua família conseguiam viver naquelas condições? E o homem responde que lá nos fundos do casebre, o bom Deus, lhe deu uma vaquinha que produzia cinco litros de leite diários e com este leite ele alimentava seus filhos com 2 litros e trocava o resto, com seus vizinhos, por outros gêneros necessários à sobrevivência de sua família. O jovem aprendiz agradece a atenção, deseja-lhe sorte e vai relatar para seu mestre o ocorrido. Após o relato seu mestre lhe dá a incumbência de no meio da noite, ir até os fundos do casebre pegar a vaquinha e joga-la em um precipício próximo da região. O jovem aprendiz fica indignado com a ordem de seu sábio mestre, mas como suas ordem eram irredutíveis ele, extremamente contrariado cumpre o serviço. No dia seguinte, antes do sol raiar, levantam acampamento e seguem com sua jornada iniciática. Passados três anos o mestre diz a seu discípulo que terminou seu aprendizado prático e que ele deveria voltar, sozinho, pelos lugares onde passaram para observar e colher os frutos de seu aprendizado. Em função do sentimento de revolta e culpa que a experiência relatada provocou no jovem aprendiz ele foi, em primeiro lugar, para aquele lugar onde ocorreu a experiência. Lá chegando não encontra o casebre e em seu lugar tem uma bela casa de alvenaria envolta em um belo gramado, viçoso e bem cuidado, onde crianças igualmente viçosas e bem cuidadas brincavam alegremente. Sua indignação aumentou, onde precipitadamente concluiu que aquela família não resistiu a tamanho mal, perdendo a propriedade para pessoas ricas da cidade que lá construíram uma casa de campo. Porém, ao se aproximar reconheceu um homem bem vestido chegando de carro percebendo se tratar daquele homem prostrado e triste, proprietário da vaquinha e do imóvel. Ao se aproximar o homem também o reconheceu e logo foi se recordando que naquela noite, após a conversa que tiveram, a vaquinha sumiu, ele entrou em desespero e saiu desorientado tentando encontrar alguma forma para reparar o mal e manter a sobrevivência de sua família, e que nestas andanças um homem conhecedor de obras de arte se interessou nas suas esculturas. E que graças à perda da vaca e o encontro com este marchand, pode reverter sua situação. Hoje ele é um homem realizado e motivado, pois sabe do seu valor e se orgulha de sua produção artística. O jovem monge fica estupefato apesar de reconhecer que esta história poderia terminar com mais tragédia ou até mesmo na sua desistência em se tornar um sábio religioso.
Com esta história podemos perceber que o mal tem várias nuances podendo, inclusive, se tornar um bem. Porém, também percebemos que o mal está relacionado diretamente com as condições psico-afetivas de cada indivíduo, podendo ficar circunscrito ao ego, aos valores sentimentais e morais ou ao Si-mesmo e as questões sagradas e transcendentais.
Vamos ampliar dois conceitos arquetípicos da psicologia junguiana para melhor entendermos a dinâmica do mal e como estes dois conceitos formam um par de opostos que, como uma sizígia, algumas vezes ficam em conjunção, outras em oposição ou, por mais paradoxal que possa parecer, surgem simultaneamente.
Vou iniciar pela persona que é à parte predominantemente, mais consciente, para depois chegarmos à sombra.
A persona é um termo derivado do latim, significando a máscara usada pelos atores na época clássica, (usada pelos atores do teatro grego, para representar as tragédias, mitos e comédias). A persona representa o estereótipo ou a proteção que uma pessoa põe para confrontar-se com o mundo.
A persona está ligada ao status social, profissões e trabalhos que ocupamos, identidade sexual etc. Durante a vida usamos muitas personas e, muitas vezes podemos combina-las, em função das necessidades específicas.
A persona, para Jung, é um arquétipo. Desta forma é inevitável. Graças a persona é que pode existir as relações sociais e o intercâmbio entre as pessoas. Ela é a intermediadora entre o ego e o mundo externo.
Cada cultura valoriza diferentes personas, podendo haver alterações, modificações, involuções e até evoluções ao longo do tempo.
A persona, como acontece com todos os conceitos junguianos, também não pode ser vista como eminentemente patológica ou falsa. Aliás, nada é essencialmente, exclusivamente e unicamente bom ou mal. Ela só será patológica, se um indivíduo ficar intensamente identificado com ela, a ponto de perder a possibilidade de flexibilidade frente a si-mesmo e ao mundo. Isso vai acarretar uma fragilidade psicológica, bem como um eterno investimento de energia para a representação de um determinado papel que mantenha sempre o personagem identificado.
O ego identificado com a persona é cego para os processos inconscientes. Não se permitindo, inclusive, perceber a própria persona. Assim, o início de um processo de individuação começa com o desnudar das falsas “roupas”, que a persona usa. Desta forma o homem irá assumir a sua autenticidade, deixando de lado aquilo que esperam dele, para ser e se aceitar como realmente é.
Quanto mais a persona se fundir no homem, mais difícil será o seu desnudar-se, pois as fusões geram confusões, provocando sofrimentos e dores. A persona, apesar de útil, pois estabelece as relações exteriores, pode se tornar um enorme obstáculo ao processo terapêutico, principalmente quando ela permaneceu muito tempo cristalizada, como a verdade do indivíduo. Assim, quanto mais evidenciada for a persona, mais a sua contra posição inconsciente, a sombra, será acionada. Geralmente em forma de projeção, a título de compensar o desequilíbrio quer esta acontecendo.
A sombra também é um arquétipo que designa tudo aquilo que o homem teme, despreza e não pode aceitar de si-mesmo e, em si-mesmo. É aquilo que uma pessoa não tem desejo de ser. É a “outra pessoa” que existe em um indivíduo, o seu lado obscuro e sombrio.
Jung afirma que a sombra é que nos faz humanos e que o mal é necessário para a perfeita harmonia.
Todos nós temos uma sombra e, quanto menos ela estiver incorporada, mais negra e densa ela será. Lidar com a sombra vai nos possibilitar a verdadeira harmonia com os instintos e, com a forma com que as suas manifestações foram controladas pelo coletivo.
É impossível erradicar a sombra, seus conteúdos são projetados sobre o próximo, até de forma forte e irracional, positiva ou negativamente. Admitir a sombra é romper com a influência compulsiva e se permitir o crescimento. A sombra também pode ter traços positivos, como qualidades valiosas que não se desenvolveram devido às condições externas desfavoráveis.
Tanto a persona como a sombra ultrapassa os limites pessoais, indo para o coletivo na forma de persona coletiva, que tem na moda e no senso comum sua principal percepção. Assim como a sombra se manifesta como sombra coletiva, como em uma guerra ou em situações de linchamentos, onde uma multidão perde o controle e atua violenta e agressivamente.
A persona vai se formando com o indivíduo, junto com a consciência, à medida que o ego se estrutura ela vai se relacionando e amoldando-se ao meio social. Assim todas as repressões ocorridas durante a formação da persona vão ficando na sombra. Esta é a primeira divisão que acontece na psique, ficando de um lado os conteúdos inconscientes da sombra e de outro os conteúdos conscientes da persona.

CAPÍTULO II – A SUPERAÇÃO PSICOLÓGICA DO MAL

Na abordagem junguiana, fica evidente o fascínio que o mal exerce. Ele não é a totalidade da sombra, mas possui um acúmulo de energia psíquica capaz de levar o ego para dimensões inimagináveis, é uma potência que ativa muitos elementos que estavam inconscientes apesar de pertencerem à totalidade humana. Muitas vezes o mal representa o lado oposto da diferenciação consciente e, quanto mais diferenciado e unilateral estiver o lado consciente da personalidade, mais facilmente correrá o risco do fascínio pelo mal. Desta forma, o mal, em si, não é absoluto. Nesta perspectiva a redenção do mal está no reconhecimento desta dimensão do si-mesmo que é desconhecida e polar para o ego consciente e sua conseqüente integração. Assim fica claro que só o indivíduo inteiro, será integro e merecedor da paz ou do reino dos céus. É importante deixar claro que integro não é sinônimo de perfeito ou de exclusivamente bom. Íntegro é sinônimo de inteiro e total, aquele que integrou suas polaridades psíquicas e age na dimensão do Self.
Para evitar o fascínio do mal, na perspectiva da psicologia junguiana, a humanidade tem duas possibilidades ou caminhos. O primeiro é individual, acontece através da relação com o si-mesmo, possibilitando que a alma seja preenchida por um poder muito maior que o mal, representante apenas do outro lado da totalidade, a alma ao se relacionar com o Self, representante da totalidade psíquica, ficará livre do assédio do mal. O segundo caminho é coletivo, está muito evidente nas tradições religiosas, e acontece quando se presentifica um sentimento de pertença a uma comunidade humana. Como o segundo caminho é muito mais viável, economicamente, intelectualmente e simplificado, podemos tentar entender o fenômeno contemporâneo da explosão do sagrado e sua conseqüente secularização, como uma atitude desesperada e inconsciente da humanidade frente o mal, que é representado pela dissociacão psicológica que as atitudes maniqueístas e racionalistas potencializaram.
O mal fascina porque representa o lado sombrio que é o outro de mim mesmo. Este “outro”, quando não integrado conscientemente ao ego, fica como uma personalidade autônoma, acumulando energia, ora sendo projetado nas várias relações interpessoais, ora tomando-nos de assalto, fazendo-nos “possuídos” pelo lado sombrio e, conseqüentemente, levando-nos a atitudes e atuações completamente inversas as da persona. Mudar de lado não produz evolução, o que provoca evolução é a integração dos lados, através do confronto dialético e hermeneutico do diálogo entre o eu e o inconsciente, ou entre a persona e a sombra.
Para Jung, a criação da consciência é a conseqüência de uma diferenciação e discriminação de opostos. Desta forma, a consciência é coeterna com o inconsciente e a totalidade psíquica é o Self, que em muitos sonhos, do povo ocidental, se manifesta na imagem de Cristo. O Self é numinoso e se assemelha a Deus. Cabe ao ego permitir a manifestação do Self no seu dia a dia. Com isso podemos inferir que o mal é a não presença do Self na construção da personalidade humana que, por sua natureza dual e sua necessidade evolucional, é paradoxal e inconsistente, correndo facilmente o risco de se fascinar pela unilateralidade que, inevitavelmente, produz ou ativa o mal.
O ego é dotado de liberdade e o Self é a manifestação do Eros, amor relacional, movimento e expansão evolutiva. A liberdade do ego faculta um mal moral, pois um ego distante e não íntegro com as antinomias paradoxais do Self é um ego suscetível ao mal. Nestes termos percebemos que um ego íntegro ao Self é um ego que ama e, prenhe deste amor, está vacinado contra o mal.
Nestas considerações, podemos perceber que o mal depende do bem, pois como uma bactéria ou um câncer, que são males produtores de patologias, sofrimento, dor e morte, ao destruírem o homem também se destroem. Por isso, sem o bem o mal não pode existir e na destruição do binômio bem e mal, o que resta é um potencial de criação, divino e misterioso. A essência do Self possibilitando a existência do ego e a sua posterior relação com Ele. Ë semelhante aa idéia do Tao, que no âmago de cada pólo existe o princípio do pólo oposto/compensatório e o Tao, como uma unidade indivisível é bom, apesar do paradoxo e da ambigüidade que existe dentro Dele.
Após esta ponderação sobre o mal e a psicologia junguiana, podemos levantar algumas possibilidades. Nossa pretensão não é de definir, pois sabemos que as definições apenas definem o definidor, dando fim a indagações tão férteis e estimulantes como estas, mas podemos fazer uma digressão, do ponto de vista da psicologia junguiana, sobre o mal e a sua redenção.
Pudemos perceber que onde prevalece o Eros não existe espaço para o mal. Em várias citações Jung também afirma que o poder ocupa a vaga do amor e que onde predomina o poder o Eros sucumbe. Desta forma, concluímos que o poder é parceiro do mal, ou seja, que o grande mal é o desejo de poder do ego frente ao Self, inviabilizando ou negando, conseqüentemente o Self, o Eros e as relações evolutivas com a inconsistência paradoxal da nossa existência.
O poder é a tentativa, angustiada e iludida, do ego em negar os aspectos misteriosos e imponderáveis de nossa vida. É o resultado do medo frente o fim último, as incertezas e os paradoxos. A busca de poder alivia o medo de encararmos o vazio interior e o nada que representa a nossa condição fraca e finita. Na dinâmica do poder tudo vira negócio, a negação do ócio, pois na tranqüilidade do ócio corremos o risco de sucumbirmos ao vazio da falta de Eros e da relação com o Self. Com isso o poder alivia, transitoriamente o medo.
O medo, Phobos, suficiente, que deveria ser um grande aliado da vida, pois nos permite a coragem, ação do coração ou manifestação consciente do Eros e do Self. O Phobos suficiente é necessário para preservar a vida. Porém, como a ilusão do poder não aceita a existência do medo, a busca desesperada de poder escamoteia o Phobos. Mas, como tudo que é negado ou reprimido continua crescendo, em um determinado momento este Phobos vai se tornar exagerado, produzindo paralisias, muito evidenciadas nos ataques de pânico da atualidade ou inexistente, banalizando a vida, levando-nos à loucura e as atitudes contra-fóbicas.
O ego que se relaciona com o Self, aceita o Eros e o Phobos suficiente, tem consciência sobre o mal, abre mão da ilusão de poder e encontra a coragem para se entregar para o mistério da existência, de forma íntegra, desarmando todo este mecanismo puramente egóico, racionalista e maniqueísta.
Com isso, percebemos que a superação psicológica do mal está na capacidade do ego em se relacionar com o Self, buscando o dinamismo do Eros e aceitando o Phobos suficiente e consciente. Nesta situação, o que surge é uma atitude de alteridade frente à própria existência. E, podemos concluir que esta atitude vem confrontar o patriarcado, iludido e encastelado no poder, manifesto nos diversos espectros: intelectual, cultural, físico, científico, religioso, racial, misogenico, econômico, comercial, bélico, enfim em todas as situações onde o que prevalece no final é a busca do poder pelo poder.

CONCLUSÃO

Podemos concluir que a saída para o problema psicológico do mal está na inclusão de um quarto elemento, em nossa cultura ocidental, influenciada pela tradição patriarcal judaico-cristã. Este quarto elemento é o lado feminino que desperta o Eros e o mecanismo da alteridade, muito menos pré-ocupado em explicar, definir e reduzir tudo a causas materiais e muito mais envolvido – como o útero que envolve e compreende – em compreender, ampliar e encontrar saídas criativas e eróticas, buscando um sentido e os significados simbólicos da existência humana e da nossa maior finalidade nesta experiência, aceitando de forma simples os mistérios da vida.
É obvio que para o pensamento maniqueísta e racionalista da ciência e das religiões machistas, este princípio feminino está associado ao mal, a carne e aos instintos cegos e animalescos presentes nela, aos prazeres mundanos, ao que é negativo para o moralismo vigente, enfim ao lado sombrio renegado pela persona coletiva e social do politicamente correto e da pureza casta. Porém estes elementos, como analisamos ao longo deste trabalho, devem ser integrados na trindade masculina, pura e livre do mal.
Com a quaternidade, tão valorizada por Jung, podemos vivenciar, dialeticamente, o bem e o mal, o masculino e o feminino, o Eros e o Phobos, presentes na natureza humana, como opostos complementares e contidos na unidade divina, a exemplo do Tao. É como se possibilitássemos a redenção e a inclusão de Lilith, a Lua negra, no íntimo de nosso ser.
O medo de abrir mão do poder para se entregar ao Eros até justifica a perseguição que as mulheres, representantes mais íntimas deste quarto elemento feminino, sofreram e, infelizmente, ainda sofrem de forma não tão escandalosa como na idade média – conforme consta nos manuais de inquisição das bruxas. E, nossa cultura que ruma, claudicante, para a evolução só poderá sair desta paralisia frente ao mal e a ilusão do poder, através do dinamismo quaternário que anuncia a alteridade como princípio básico. Assim tornarmo-nos mais íntegros, mais inteiros e totais e, conseqüentemente, mais éticos, eróticos e livres dos apegos do ego fascinado pelo poder e pelo mal.

Waldemar Magaldi Filho

Fundador do IJEP e coordenador dos cursos WWW.IJEP.COM.BR

Autor do livro: DINHEIRO, SAÚDE E SAGRADO

www.elevacultural.com.br


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